ENTREVISTA: FARMª CARMELINA LEITE - JORNAL PRINCÍPIO ATIVO

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CARMELINA LEITE

Farmacêutica luso-brasileira


Nascida em Belo Horizonte, mas criada em Portugal desde pequena, a Farmacêutica luso-brasileira (mãe portuguesa e pai brasileiro) teve influência da mãe na escolha da profissão. Com a mudança da família para o Porto, sua vida acadêmica foi marcada por viagens para a África e um excelente estágio na Organização Mundial de Saúde (OMS). Devido à crise financeira na Europa, ela decidiu retornar ao Brasil, retomando seus estudos e agora busca uma recolocação no mercado de trabalho brasileiro. “Afinal, hoje, o Brasil é a vitrine do mundo”, comenta.


Nessa entrevista, a Farmª Carmelina Leite relata suas experiências profissionais, as diferenças da atividade farmacêutica em Portugal e no Brasil e suas expectativas de trabalho no país, além de falar um pouco sobre a delicada situação econômica que atinge o Velho Mundo.

 

 

 

Princípio Ativo (PA): Como foi sua formação acadêmica?


Carmelina Leite (CL)
: Sempre estudei em escola pública. Fiz dois cursos de farmácia, um técnico (Escola de Tecnologia do Porto) e mais quatro anos de licenciatura em Farmácia (Faculdade de Farmácia do Porto). Com essa formação posso atuar em farmácias, hospitais e indústrias. Só nas análises clínicas é que não, pois é necessário uma especialização na área. Dando seguimento, conclui meu mestrado em Ciências Farmacêuticas.


PA: Como é a formação dos profissionais de farmácia em Portugal?


CL
: Em Portugal há técnicos de farmácia, assistente dos técnicos (ambos sem formação superior) e os farmacêuticos, todos com legislação própria, mas os assistentes estão em extinção. Hoje, disputamos espaço com novas profissões como os engenheiros químicos, bioquímicos, biomédicos. Porém, para ser diretor técnico de um estabelecimento é obrigatório ser farmacêutico.


PA: Houve uma significativa alteração na legislação farmacêutica em Portugal. Como foi? Quem foi afetado?


CL
: Em 2007, o Parlamento Português alterou uma legislação da década de 1950 (Governo de António de Oliveira Salazar) que determinava que as farmácias só poderiam ser de propriedade de farmacêuticos. Houve um grande debate com prós e contras, mas a influência do mercado ganhou e a nova legislação permite que qualquer um seja dono de farmácia.


PA: Houve reação do mercado?


CL
: Ainda não abriu mais farmácias, pois a situação econômica não está favorável. O que dá lucro são os medicamentos dispensados com receita médica e alguns produtos de cosméticos. Após essa lei torna-se mais difícil permanecer com o conceito de espaço de saúde. A cultura de Portugal não é de comércio dentro da farmácia – como no Brasil – a tendência é que as pessoas procurem aquelas que irão manter a aparência de estabelecimento de saúde.


PA: E como funciona a venda de medicamentos?


CL
: O Estado participa com uma porcentagem na venda dos medicamentos através de uma parceria com a Associação Nacional de Farmácias na compra e aquisição. Há valores diferenciados para compra de medicamentos com receita. O sistema é válido para toda a população, a lei é vasta e complexa, com diferença para idosos, deficientes físicos e determinadas patologias têm desconto especial, mas nada é gratuito.


PA: Como atua o farmacêutico nesse sistema?


CL
: Lá todas as farmácias são denominadas “farmácias comunitárias”. O farmacêutico lança em um sistema unificado todos os medicamentos, as vendas e receitas. Como o sistema está completamente adaptado aos serviços, automaticamente já é calculado o desconto de acordo com a legislação específica para cada paciente. Os medicamentos com prescrição são mais baratos.


PA: E atrás do balcão?


CL
: Em Portugal as farmácias são espaços de saúde, como uma extensão do consultório médico. O paciente sempre sai do consultório com dúvidas e o farmacêutico complementa o atendimento, explicando com calma e clareza sobre os medicamentos, medindo a pressão arterial, glicemia, triglicerídeos e colesterol. É um serviço pago, mas bem acessível e gera concorrência entre os estabelecimentos. Alguns fazem de forma gratuita, como brinde ou campanhas.


PA: Bem diferente do Brasil.


CL
: Muito. Quando cheguei ao Brasil e vi as farmácias cheias de mercadorias e alimentos, confesso que me assustei. Os comerciantes brasileiros ainda não perceberam que seria mais negócio ser um espaço de saúde, um diferencial que iria fidelizar o cliente.


PA: Como é a relação farmacêutico x paciente/cliente?


CL
: Realizamos diariamente os “cuidados farmacêuticos”, orientando o paciente, que por sua vez, marca um horário com o farmacêutico. Todos os dados dessa “consulta” são registrados em uma ficha, que chamamos de histórico, que depois é enviado para o médico (chamado “médico da família”) que vai avaliar e ver a evolução do quadro do paciente.


PA: Quais são os órgãos reguladores e fiscalizadores da profissão farmacêutica em Portugal?


CL
: Para exercer a profissão temos que nos inscrever na Ordem Nacional dos Farmacêuticos, algo como o Conselho Federal de Farmácia (CFF). Como Portugal é minúsculo, não existem regionais e sim secções (Porto, Lisboa, etc). Temos um restrito Código de Ética e somos regidos também pela Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde – Infarmed.


PA: O que seria a Infarmed?


CL
: È um órgão do governo que fiscaliza todos os estabelecimentos de saúde do país, comparando-se com a Anvisa daqui. Fiscaliza os estabelecimentos e os profissionais, registros, dispensação de psicotrópicos, há um sistema de controle de medicamentos regido pela Infarmed todo automatizado que controla o receituário.


PA: Há a definição de RT?


CL
: Sim, o diretor técnico é o responsável geral assim como no Brasil, o substituto tem o cargo de farmacêutico adjunto nos estabelecimentos.


PA: Há representação da categoria?


CL
: O Sindicato é nacional – Sindicato Nacional dos Farmacêuticos - é o único órgão sindical no país que representa os trabalhadores. O piso salarial nacional está e torno de €1.300,00 (algo em torno de R$ 2.600,00) para 40h/semanais.


PA: Como é a saúde pública em Portugal?


CL
: Há o Sistema Nacional de Saúde (SNS), desde a década de 1970, que não é gratuito, os usuários contribuem com taxas moderadoras que variam para cada tipo de atendimento/procedimento. Com a crise econômica, o governo promoveu cortes severos no orçamento da saúde. Quem não tem como pagar entra na fila de espera.


PA: O governo promove campanhas de saúde?


CL
: Sim, e uma das mais bem sucedidas da Europa é a de vacinação em Portugal, muito bem estruturada e em parceria com as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos.


PA: Tem alguma doença mais grave que o governo alerta de forma massiva?


CL
: A Gripe Suína (Vírus H1N1) e a Tuberculose que ainda não foi erradicada. Mas o governo também alerta sobre doenças crônicas, como diabetes, pressão alta (excesso de sal nos alimentos), a obesidade que já é um problema de saúde pública e a distribuição gratuita de preservativos.


PA: A população responde bem?


CL
: Sim, há incentivo à prática de exercícios físicos com academias populares. Em Portugal a taxa de natalidade é baixíssima, a população está envelhecendo e precisa de cuidados.


PA: E as patentes? São polêmicas?


CL
: Há anos não há avanços na lei de propriedade intelectual. Não há vontade política. Hoje, as patentes duram 20 anos na maior parte dos medicamentos, sem fóruns de discussão.


PA: E os genéricos?


CL
: Já estão no mercado há um bom tempo. No começo as pessoas desconfiaram devido o baixo custo, mas com campanhas do governo e esclarecimentos dos farmacêuticos todos usam. O problema está na grande quantidade de laboratórios produzindo muitos genéricos com o mesmo principio ativo (cerca de 20), há uma “guerra” entre as indústrias. Muitos médicos já prescrevem as receitas com o nome dos laboratórios. É uma relação complexa entre médicos-indústrias-farmacêuticos.


PA: Como é realizado o recolhimento de resíduos sólidos em saúde?


CL
: Através do sistema Valormed, sem custo para os estabelecimentos já que é mantido pelas indústrias farmacêuticas. Há campanhas para incentivar a população a descartar de forma correta nas farmácias e depois o sistema faz o recolhimento. Funciona muito bem.


PA: Como é a venda dos anorexígeno?


CL
: Há controle e está em discussão sobre a proibição, mas nada concreto como no Brasil. A farmacovigilância é realizada pela Infarmed e segue rígidos protocolos.


PA: Como foi seu estágio na OMS?


CL
: Foi uma experiência e tanto, um intercâmbio de profissionais que durou três meses. Trabalhei no departamento de recursos humanos da saúde e tive muita informação sobre os Palopos (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa).


PA: Antes disso você foi para a África?


CL
: Sim. Participei de missões humanitárias em Angola e Moçambique, através de uma Universidade. Foi um choque cultural e de realidade ao ver as péssimas condições que aquelas pessoas vivem.


PA: Como é hoje o Brasil na visão dos portugueses?


CL
: O Brasil está na vitrine do mundo por sua posição econômica, em especial nas áreas de engenharia e tecnologia. A saúde não é um forte que temos informações a nível internacional. Os lusos confessam que o Brasil é a colônia que deu certo e os mais velhos têm muito interesse em conhecer.

PA: Mas...


CL
: É triste dizer isso, mas ainda há muita prostituição de brasileiras em Portugal. O tráfico de mulheres é intenso. Diminuiu nos últimos anos, devido ao tráfico de mulheres do leste europeu, mas ainda persiste.


PA: E a crise econômica europeia?


CL
: Uma calamidade. Temos níveis altíssimos de desemprego, indústrias fechando, comércios tradicionais não resistiram aos altos impostos. O mercado asiático invadiu com preços mais acessíveis, mesmo não sendo de boa qualidade, mas é propício para a era do descartável. Muitos jovens sem emprego, temos apenas contratos temporários, sem segurança, sem direitos trabalhistas garantidos.


PA: E o euro?


CL
: A crise se intensificou com o euro. Ele veio com boas intenções em unificar a moeda frente ao dólar, mas cada país tinha um sistema econômico. Isso assusta o futuro...


Mais sobre a profissão farmacêutica em Portugal:


www.valormed.pt
www.infarmed.pt
www.sindicatofarmaceuticos.org
www.ordemfarmaceuticos.pt